Spengler e Marx: Um Estudo de Patologia Social
-- Alexander Raven Thomson
Duas destacadas filosofias da história emergiram do impacto do racionalismo do século XVIII nos séculos seguintes. Uma delas chegou até nós por meio da popularização da dialética hegeliana, na qual Karl Marx substituiu o conflito de ideias puramente idealista que Hegel postulou em termos gerais por um conceito materialista de luta histórica.
O outro deve sua origem a Goethe e Nietzsche, é
mais humanista do que materialista, e nas mãos de Oswald Spengler alcançou o
mérito notável aos olhos dos relutantes realistas modernos de provar uma
previsão muito verdadeira das tendências da sociedade contemporânea. À primeira
vista, parece que não há duas filosofias mais diametralmente opostas do que o
determinismo materialista de Marx e o destino orgânico de Spengler, cada um
procurando explicar o curso da história a partir de pontos de vista conflitantes.
No entanto, longe de haver um conflito essencial
entre essas duas filosofias, elas são duas interpretações das mesmas tendências
históricas, ambas confirmadas por eventos posteriores à morte de seus
protagonistas, e podem ser sintetizadas em uma perspectiva histórica mais ampla
que abrange ambas.
Isso pode parecer uma impossibilidade, mesmo porque
o marxismo, mais popular, é essencialmente otimista, enquanto o spenglerismo é
condenado por seu pessimismo básico. No entanto, mesmo essa contradição é
suscetível de síntese, quando percebemos que o marxismo é fundamentalmente uma
filosofia de liquidação da hierarquia social do passado em benefício das massas
desprivilegiadas, tendo como apoteose final o “definhamento do Estado”,
enquanto Spengler é o apóstolo da autoridade e liderança, vendo na desigualdade
social a própria base da conquista cultural, e a revolta da “ralé” em busca de
gratificação material como o fim até mesmo daquela Civilização [Zivilisation][1]
em que uma Alta Cultura degenera-se.
Olhando para o processo histórico de pontos de
vista diametralmente opostos, ambos os homens chegaram à mesma conclusão. Um
acolhe com otimismo a destruição do privilégio, a abnegação da liderança, o
“definhamento do estado” como processos necessários na “libertação” do
proletariado – o nivelamento de toda a sociedade civilizada ao seu potencial
mais baixo. O outro vê esse mesmo processo (que ele não nega que esteja
ocorrendo) como a destruição da sociedade, a abnegação do espírito humano, a
liquidação da civilização para satisfazer a ganância insaciável das classes
inferiores da humanidade; estes são incapazes de criar as realizações culturais
que eles agora desejam transformar para sua própria gratificação.
Surge a conclusão paradoxal de que Spengler é um
socialista muito melhor do que Marx, pois deplora a degradação da sociedade
como entidade orgânica, enquanto Marx considera o socialismo, imposto pela
ditadura do proletariado, apenas como um meio para um fim, que é o “definhando
o estado” para liberar as classes mais baixas da humanidade de qualquer
compulsão adicional para servir a fins mais elevados do que sua própria
vantagem material. De fato, não seria ir longe demais dizer que Marx não é um
verdadeiro socialista, mas é um inimigo da ordem social (que inevitavelmente
deve ser hierárquica), na medida em que deseja liquidá-la e, portanto,
“libertar” as massas de suas compulsões ao serviço para realizações mais
elevadas.
Assim, podemos dizer que tanto Marx como Spengler,
como observadores do processo histórico, chegam a conclusões semelhantes: um
aceita com prazer como progresso inevitável em direção a felicidade[2]
humana, e o outro rejeita com horror como a degradação da humanidade ao nível de
bestas, das quais nobres expoentes do espírito humano a levantaram. Isso, no
entanto, está longe de ser uma explicação completa do verdadeiro significado do
choque dessas duas filosofias.
Por que Spengler capitulou tão mansamente diante de
seu adversário mortal? Por que ele aceitou A Decadência do Ocidente tão
inevitável quanto a descrição otimista de Marx desse mesmo processo como a
estrada para seu paraíso proletário na terra? A resposta é típica dos perigos
de uma filosofia excessivamente sistematizada.
Spengler tinha um conceito de sociedade muito mais
elevado do que o socialismo autodestrutivo de Marx, quando a reconheceu como um
organismo social no qual o indivíduo humano encontrava sua satisfação e sua
realização a serviço dos ideais mais elevados de todo o propósito social. No
entanto, ele cometeu o erro de conduzir sua analogia orgânica, com a típica
meticulosidade teutônica, a ponto de supor que, como a sociedade era orgânica,
deveria ser tão suscetível às leis do crescimento, floração e decadência, tal
como qualquer outro organismo vegetal enraizado no solo da paisagem terrestre.
Ele não parou para considerar que a natureza é
perfeitamente capaz de produzir árvores, como as famosas sequoias gigantes da
Califórnia, que podem sobreviver por milhares de anos, porque são praticamente
imunes à catástrofe natural. O declínio e a morte dos organismos naturais são
necessários para que possam ser substituídos por réplicas de si mesmos, se sua
espécie quiser sobreviver às exigências da luta pela existência e às
catástrofes naturais, como os incêndios florestais (aos quais as sequoias são praticamente
imunes), o que pode varrê-los.
Os organismos sociais, por outro lado, escapam a
essa lei férrea da natureza em relação aos organismos individuais, como se
mostra claramente até nas formas inferiores das comunidades de insetos, que se
perpetuam por “enxameação” sem necessidade de sacrificar a comunidade parental
à decadência e à morte.
Como observador do cenário histórico com uma
perspectiva muito mais ampla do que Marx, uma vez que cobriu Civilizações de
todas as épocas e de todos os continentes, Spengler viu no declínio e queda de
Cultura [Kultur] após Cultura no curso da história mundial uma
morfologia natural – um inevitável processo de senilidade e morte. Daí sua
concordância com Marx de que a Civilização europeia estava em processo de
dissolução, por razões tão deterministas e errôneas quanto as do profeta do
milênio comunista.
No entanto, como podemos contrariar a interpretação
de Spengler dos fatos indubitáveis da história, de que todas as Civilizações
do passado de fato deixaram de existir? Se as civilizações não morrem de morte
natural, então por que deveriam morrer? Qualquer médico pode responder a essa
pergunta. Mesmo que um dos “Matusaléns”[3]
de Bernard Shaw nascesse milagrosamente neste planeta, ele ou ela ainda poderia
perecer de uma das doenças virulentas da qual a humanidade é herdeira e nunca
sobreviver para ser reconhecido como um dos imortais.
Não temos necessidade de aceitar de Spengler o
conceito mais do que dúbio da morfologia da civilização, quando há muitas
evidências de uma patologia da Civilização. Muitos reformadores apontaram para
as doenças da sociedade, embora nem sempre tenham concordado em seus
diagnósticos, e podem, em tempos recentes, especialmente, ter argumentado a
partir de premissas falsas quanto à anatomia e às funções da ordem social
orgânica. Que tais doenças existem, no entanto, é geralmente admitido, e a
suposição de que Civilizações passadas sofreram decadência patológica em vez de
morfológica é mais do que razoável.
Voltando à síntese de Marx e Spengler, considerada
do ponto de vista do conceito superior de ordem social (que é a grande
contribuição deste último para o pensamento moderno). Se não admitirmos a Marx
que nossa sociedade está em processo de decadência senil, como um destino
inevitável de toda vida orgânica, então estaremos em condições de desferir um
golpe mortal contra o inimigo marxista.
Se o declínio do Ocidente não é natural, então é o
produto da doença. O que o otimista Marx descreve no processo histórico de
decadência e morte primeiro do sistema feudal e depois do sistema capitalista
de nosso tempo é a doença inerente à ordem social, sua progressiva decadência e
desintegração, que esse inimigo da sociedade elevou a uma filosofia de
progresso e bem-estar humano. O fato de Marx ter subordinado o espírito humano
ao seu ambiente material deve ser evidência suficiente de que sua filosofia é patologicamente
decadente, pois é somente pelo triunfo da vontade humana sobre um ambiente
adverso que a Civilização foi criada, e a ordem social trazida à vida. Há pouca
necessidade de Marx postular o “definhamento do Estado” final (do qual há
poucos vestígios na Rússia soviética), pois haveria pouco restante para
definhar, a julgar pelo Império Romano em declínio após uma prolongada dieta
para as massas de pão e circo.
É claro que a doença da Civilização, que Marx
elevou a uma filosofia nobre, é muito anterior ao profeta comunista e derrubou
muitas civilizações imponentes antes da nossa. Seu nome é ganância humana
individual, e tem atuado em maior ou menor medida ao longo dos tempos [grifo
meu]. Nem foi Marx o primeiro a levantá-lo sobre o altar para a adulação da
humanidade, como o Bezerro de Ouro de Arão. Os grandes liberais do início do
século XIX, como Jeremy Bentham[4]
e John Bright[5], há
muito fizeram dele o Deus dos novos ricos da revolução industrial, antes que
Marx os superasse ao entregar a doutrina perniciosa às massas proletárias. O
“interesse próprio esclarecido” exercido pelos ricos e poderosos não é menos
destrutivo para ordem social e a justiça social do que a ganância das massas
reunidas atrás de seus líderes autonomeados para exercer a ditadura do
proletariado na liquidação final dos frutos do esforço social em um “band-out”
geral.
Pode-se, de fato, dizer que, devido ao instinto
social defeituoso do homem, a sociedade, como o próprio homem, começa a morrer
assim que nasce, trazendo em si as sementes de sua própria destruição. A
ganância humana guerreia contra o serviço social ao longo da história. A época
em que o homem estava preparado para construir catedrais para sua fé religiosa
em um propósito nobre na terra, enquanto vivia em uma choupana, foi
relativamente curta. Depois veio o aristocrata, reivindicando o direito de
viver em dissolutas extravagâncias, independentemente de dar ou não em troca os
grandes serviços sociais que muitos de sua ordem ainda consideravam um dever.
O declínio posterior trouxe os comerciantes e
industriais cuja exploração gananciosa de seus semelhantes inevitavelmente
evocou a reação violenta da luta de classes, na qual Marx baseou seu conceito
filosófico. Tudo isso são sintomas de decadência e desintegração social, e de
modo algum, como o “subversivo” Marx quer nos fazer acreditar, em inversão
típica, são sinais do caminho do Nirvana proletário.
Não há, então, esperança para a manutenção da ordem
social, que somente por sua comunhão do espírito do homem pode elevar a
humanidade acima do nível dos animais? O homem é tão desprovido do instinto
social, que mantém as comunidades de insetos em perpetuidade, que cada uma de
suas civilizações – até a nossa – deve perecer em meio aos aplausos das massas
enlouquecidas pela ganância e seus líderes equivocados, que abusam a nobre
descrição socialista para completar a destruição da sociedade?
De forma alguma, se a elite da nossa sociedade
europeia pode compreender a mensagem de Spengler sem sucumbir ao seu
pessimismo. Uma regeneração da nossa sociedade é eminentemente possível, uma
vez diagnosticada a doença de que padece e realizado o tratamento necessário
para a sua erradicação.
Todos os meios de propaganda e reeducação devem ser
mobilizados para substituir a doutrina venenosa da ganância pelo ideal saudável
do serviço. As atividades antissociais em todos os níveis da sociedade devem
ser suprimidas, pois não está em jogo menos do que a herança da cultura de
todos os tempos, ameaçada pela longa noite de outra “Idade das Trevas”.
Por mais drásticas que sejam essas medidas, elas
não escravizarão a humanidade, mas, no sentido mais verdadeiro, libertarão o
homem de seus instintos animais mais baixos, para que ele possa mais uma vez
conhecer a satisfação e a felicidade de uma grande conquista social -- em
parceria, e não em competição, com seus semelhantes. Uma sociedade saudável
ainda pode ser salva do otimismo de Marx e do pessimismo de Spengler.
FONTE: THOMSON, Alexander
Raven, “Spengler and Marx: A Study in Social Pathology”, The European,
Vol. 18, agosto de 1954. pp.20-24.
Veja o original aqui
[1] Nota do Tradutor: iniciais maiúsculas e as palavras “Zivilisation” e “Kultur” foram adicionadas para que o leitor identifique estes como conceitos spenglerianos, e para que não sejam confundidos com o sentido atribuído à estas palavras por outros autores, ou pelo senso comum.
[2] Nota
do Tradutor: Do original “human milennium”, expressão britânica que pode
ser traduzida como felicidade para todos, em um sentido utópico.
[3] Nota do Tradutor: Referência à peça teatral “De Volta à
Matusalém ou Um Pentateuco Metabiológico”, escrito entre o final da Primeira
Guerra Mundial e o ano de 1920. Shaw, influenciado pelos horrores da guerra,
desconstrói o mito da criação, erodindo o clichê pastoral e bucólico do Jardim
do Éden. Através de dois quadros, coloca em cena Adão, Eva, A Serpente e Caim,
expondo os conflitos e descobertas supostamente enfrentados pelos primeiros
seres humanos.
[4]
Nota do Tradutor: Jeremy Bentham (1748-1832)
foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a construção de um
sistema de filosofia moral. Juntamente com John Stuart Mill e James Mill, foi
tradicionalmente considerado como o difusor do utilitarismo.
[5] Nota do
Tradutor: John Bright (1811-1889) foi um estadista radical e liberal britânico, um dos maiores oradores de sua geração e um promotor de políticas de livre comércio.
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